por Adrian Clarindo
Meu pai bebia. E se transformava em outro. Eu via tudo com os olhos de criança. E no auge de seus devaneios, meu pai dizia uma frase sempre: “Eu sou rico”. Eu não conseguia entender: nossa TV era pequenina, preto e branco, a mãe se matava para fazer comida para todos. Como meu irmão sempre lembra “Ela pedia para eu comprar um único ovo para o almoço” e inventava algo lá na cozinha. E não havendo quarto para tanto irmão, eu, o menor, dormia com os meus pais, num cantinho da cama colado à parede. Lembro até hoje de colocar a testa na parede de tinta desbotada e gelada antes de dormir. Eu, com os meus olhos infantis, era um pequeno imbecil. Eu tenho amontoada uma pilha imensa em constante crescimento de momentos em que eu fui um completo imbecil. Sou um grande colecionador de nãos. Ninguém tem ideia de quanto tempo eu perdi e perco sendo um idiota mais que perfeito. E, portanto, eu não entendia nada.
Foi com o tempo, numa conversa e outra, que meu pai deixava escapar algum fato da vida dele. Eu ia montando as peças como um quebra-cabeça dentro da minha cabeça de burro. Sem vitimização, sem ideia de “olhem como eu sofri” como eu mesmo faço tantas vezes, meu pai me contava, numa ordem simples e bonita de se ouvir, sem tantas palavras desnecessárias como eu conto as coisas, que na casa dele as coisas eram outras. Não havia um botão na parede que acendesse uma luz ou gelasse a comida, não havia um cano que trouxesse água, não havia… a vida assim, dura e fria, de trabalho cedo, permitiu que o pai estudasse somente até a terceira série. Um dia, ele me disse que foi com oito ou nove anos que teve o primeiro par de sapatos, muito maior do que o pé dele. E aí é que fui gradualmente ficando um pouco mais atento para aquela frase repetida por ele quando ele não era bem ele. Na casa de paredes geladas pintadas de cor oca, na casa em que um botão ligava a TV pequena, e que água saía quente do chuveiro, meu pai sempre esteve certo.
Ele era rico. Éramos todos.
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